quinta-feira, 4 de janeiro de 2007


PROMETO

Prometendo aquilo que não dá para cumprir

Eu, no segundo dia do ano, amanheci igual a político em dia de posse: fazendo o maior mis em scène, jogando duro, prometendo de novo tudo que tinha prometido durante a campanha eleitoral e lá dentro do coração, com sentimento adverso. Algo assim como ler o discurso feito pelos ghost writer - geralmente um assessor com pendores literários que submete o texto para aprovação final do secretário particular, do presidente do partido que ali está, da mulher do possuidor e até da empregada, que, enquanto traz o café ouve o debate e diz:
- Ah! Doutor. Isso tá bom não!
O certo é que enquanto vai-se lendo o discurso pré-aquecido, a língua solta as palavras, mas a cabeça pensa:
- Vocês vão é se lascar, seus cornos abestalhados. Farinha pouca meu pirão primeiro.
Daí, que como faço todos os anos para enganar mãe, avó, mulher, filhos e amigos, pois sou mesmo um sem-vergonha discarado, decidi fazer minha lista com resolução de ano novo. O interessante é que todo ano todos caem na mentirada. E, assim como o povo, meu povo tem a memória curta, como acontece com os políticos, ninguém me cobra nada; com a “impunidade” vou seguindo em frente e mentindo cada vez mais. Agora aprecie a lista das coisas que farei e deixarei de fazer ou vice-versa:
1 - Vou parar de bater bronha, pois sei que é pecado e nasce cabelo nas mãos;
2 - Não mais atormentarei a vizinha, loiraça belzebu, com minhas propostas indecorosas;
3 - Juro que vou pagar o aluguel e o condomínio e ainda colocar o lixo fora da área social;
4 - Não vou mais jurar de porrada o porteiro só porque ele tem o péssimo hábito de me entregar correspondências cheias de dívidas, títulos vencidos e boletos de cobrança;
5 - Vou parar de soltar pum embaixo da coberta e ainda ficar curtindo o cheiro;
6 - Não vou roer mais unha, nem tirar meleca para fazer bolinha;
7 - Nunca mais que vou jogar cotonetes, resto de comida e a fralda suja do bebê pela janela do edifício;
8 - Vou fazer de tudo para não tocar Hendrix a todo volume altas horas da noite;
9 - Não vou mais tentar envenenar o cachorro do vizinho;
10 - Vou parar de arranhar o carro, na garagem do prédio, daquele vizinho que não gosto;
11 - Passarei a atender aos telefonemas do gerente do banco;
12 - Penso seriamente em fazer aquele regime que prometo há dez anos;
13 - Não esquecerei de tomar, diariamente, os remédios para pressão;
14 - Não vou mais comer alimentos gordurosos (embora eu saiba que o que estraga minha pressão não é a comida, e sim a farinha);
15 - Vou parar de beber (muito embora eu saiba que minha pressão não sofre efeito do álcool. É o estresse da vida moderna);
16 - Pararei de dar risada em filmes de amor e de chorar em filmes de terror;
17 - Deixarei de torcer pelo bandido no filme de cow-boy;
18 - Nunca mais roubarei dinheiro do cego da igreja do Bonfim;
19 - Nem quero mais ouvir falar de amanhecer o dia comendo sarapatel nas Sete Portas;20 - Não vou mais me irritar com filas e atrasos no ferry boat;
21 - Nem pense em me convidar para sexo grupal com as meninas da Pituba;
22 - Deus me livre das más-companhias;
23 - Não vou mais chamar bicha de bicha, nem sapata de sapatona;
24 - Começarei a devolver os livros e discos que tomei emprestado faz tempo;
25 - Este ano farei aquele exame de verme que venho adiando;
26 - Vou cortar as unhas;
27 - Vou escovar os dentes pelo menos duas vezes por semana;
28 - Vou usar desodorante;
29 - Nem quero saber de fofoca;
30 - Pretendo freqüentar academia todos os dias e perder a barriga indecente;
31 - E o principal que é minha firme intenção de deixar de mentir (coisa que se não der para este ano pode ficar para o ano que vem, que não tem lá toda esta premência também) e de torcer pelo Bahia, que de morto basta meu... como diria o jornalista Zé Rodrigues, meu saudoso amigo Irecê, escroto que nem eu.

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DEVOÇÃO

Os auto-milagres de Bom Jesus dos Navegantes

Chamar pelo nome de Deus sempre foi uma saída na hora do desespero dos pescadores que saíam para os pesqueiros, muitas das vezes mais de quinze ou vinte quilômetros de distância em mar aberto. São muitos os protetores dos pescadores: São Paulo, São Gonçalo, Santo Erasmo e o mais famoso é São Pedro. Todos da Igreja Católica. Na Igreja Ortodoxa quem protege os marinheiros é São Nicolau. No candomblé a entidade é feminina e se chama Iemenjá. O hábito de chamar por Jesus veio dos portugueses que saíam em suas loucas empreitadas, em busca de especiarias e riquezas em todos os mares.Mas, foi na Bahia que Jesus passou a ser o Bom, Nosso e Senhor, de tanto impedir que os saveiros, os paquetes, as catraias, canoas e caravelas afundassem. Passou a merecer um tratamento todo especial. Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes, que ontem teve mais um majestoso dia, foi acolhido nos braços de sua mãe, na Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem e só sai do nicho no dia 29 de dezembro para ir visitar Nossa Senhora da Conceição, e voltar para sua morada estilo colonial no bairro de Boa Viagem, na primeira manhã do ano novo, chova ou faça sol.Nenhum historiador garante. Alguns vagos registros indicam que a procissão, com oferendas foi uma forma que os comandantes das naus que chegavam da Europa ou África, teve início no século Dezoito. Entretanto, foi exatamente no ano de 1890 que começou para valer a chamada devoção. No final do mês de dezembro todo o litoral estava sob uma tempestade daquelas com raios e trovões e ninguém conseguia sair para pescar fazia dias. A situação era caótica e até mesmo o protetor estava ameaçado de não sair em sua procissão marítima, pois, além do mar bravio havia o problema da falta de apoio do Estado, ainda dividido por causa da Proclamação da República, ocorrida um ano antes. A Marinha negou embarcação para conduzir a imagem. Na última hora um oficial decidiu emprestar a galeota e bastou colocar a imagem em seu interior, em plena violência das ondas, que o tempo clareou e o mar ficou calmo. Os fiéis comemoraram seguindo a embarcação a nado e em barcos menores. Era um milagre.Mas, ainda haveria um outro a acontecer. Como de praxe, quando a galeota passava perto do Forte São Marcelo, sempre era saudada com 21 tiros de pólvora seca. Desta vez foram só dois tiros, que passaram milagrosamente sobre a cabeça do santo. A “salva” de bala verdadeira canhão foi atingir um navio de bandeira norueguesa e causou avarias com certa gravidade, gerando uma situação delicada para o governo brasileiro. Estado e Igreja nunca mais voltariam a se entender no que concernia aos festejos para Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes.No ano seguinte a Marinha negou novamente a embarcação e um comerciante português de nome Agostinho Dias Lima, salvou a situação emprestando um escaler que foi rebocado pelo trajeto. A relação com a Marinha do Brasil se deteriorava a cada ano e um grupo formado por operários, pescadores, calafates, capatazes e carpinteiros decidiu que a procissão marítima não acabaria. Era preciso construir uma galeota, coisa que demandava meses. No dia 27 de dezembro de 1891, com as bênçãos de Bom Jesus e Oxalá saiu do estaleiro, localizado na praia do Bogari, uma monumental embarcação com 60 palmos de comprimento, 12 de boca, seis de pontal com camarim de 11 palmos de comprimento (sendo nove de frente e 6 de fundo). O anjo Arcanjo que orna a proa tem seis palmos de altura e foi feito no Liceu de Artes e Ofícios, o mesmo da ramagem e outros emblemas.A galeota era mais um milagre a ser registrado. E levou de batismo o epíteto “Gratidão do Povo”. Só não se sabe quanto custou à obra, mas aí é coisa afeta ao santo e seus devotos. Já a Marinha, no século passado, se redimiu, e hoje empresta seus grumetes cheios de caxangás, para que levem a remo a galeota até os pontos de atração. Assim prossegue a mais que centenária devoção.

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UM NATAL INESQUECÍVEL

O baiano não sabe mesmo comemorar o Natal. Vivenciar o espírito natalino somente no Sul do Brasil. Lá sim, dá gosto apreciar as decorações. E não estou nem falando da cidade de Gramado que se volta para estes festejos desde o mês de novembro e vai até janeiro. Uma cidade em festa de cores, luzes e música em cada esquina. Digo mesmo das casas mais suntuosas às mais humildes, que preparam e exibem suas guirlandas, árvores e pisca-pisca. Por nossas bandas o mais dedicado aos festejos de fim de ano acha que basta comprar um fio cheio de luzes e arrumar de qualquer jeito na janela que está tudo bem. O que se vê pelas fachadas são toscos arranjos. Uma parte em cima, outra parte embaixo, um cordão aceso e outro com as luzes apagadas. Os mais “criativos” ainda tentam fazer desenhos, como de um pinheiro ou do gorro de Papai Noel, mas a maioria coloca as lâmpadas como se tivesse fazendo uma obrigação com desprazer. Melhor deixar sem luz.Também, excetuando-se o centro da cidade onde, todo Natal, alguma novidade, por mais ínfima que seja, é exposto ao público, nada de mais há para ver. O Dique do Tororó recebe algumas lindas árvores natalinas feitas de luzes, numa combinação chamativa, mas o entorno dele fica parecendo mesmo boca de pobre. Cheio de vazio.
Quem passa pela avenida Centenário vê que foi feito uma meia-sola. Cada árvore levou seu quinhão de lâmpadas, que sequer chega a 10 por cento do tronco. Lá, deveria ser uma iluminação especial, com as copas iluminadas com cores diversas. A mesma coisa poderia ser feita com as árvores do Largo de Roma. Mas, o que parece é que a Prefeitura Municipal, por falta de verba ou contenção de despesa ou economia de espírito natalino decidiu pegar parte da fiação que caberia nestes cantos e usou em outros bairros da cidade. Ficou ruim em tudo que é canto.Todo ano, justamente por ser o Natal, minha época preferida, critico a falta de criatividade do pessoal da Prefeitura. Mas é que lembro de uma festa de Natal de antigamente, onde o que não faltou foi criatividade para o pessoal lá da Península Itapagipana.Na época não tinha nada disso dessas luzes importadas que brilham, piscam e somente faltam fazer acrobacia. As lâmpadas eram de todas as cores, graúdas e os arranjos eram feitos manualmente para serem colocados ao redor da árvore. Todo mundo fazia um presépio e a disputa entre as casas era para ver quem fazia o mais bonito. Naquele ano seu Antonio Surdo, que os meninos chamavam de Antonio Ô! (porque a gente gritava para ele assim: Ô! Ta ouvindo seo Antooonho? estava em dificuldades. Pela primeira vez o presépio principal, da praça, não poderia ser elaborado, pois faltava o barro que era transformado em cavalos, carneiros, vacas, bodes, pássaros, estrelas, manjedoura, menino Jesus, Reis Magos e os pais de Cristo.Várias pessoas saíram em busca do barro especial que virava cerâmica e arte nas mãos de seo Antonio e não conseguia nem no subúrbio da cidade. Isso porque o saveiro que trazia o barro lá do Paraguaçu tinha virado. Era uma tristeza só.Até que aconteceu um milagre. Uma caçamba que levava barro para uma obra no Bonfim quebrou o eixo lá na Boa Viagem. Para fazer o conserto era preciso jogar fora a carga. Na véspera de Natal todos os vizinhos largaram seus afazeres para cessar o barro; pisar o barro; amassar o barro enquanto seu Antonio Ô! Ia fazendo os bonecos. Foi o maior e mais bonito presépio que a cidade já viu.Hoje não dá mais para se ter milagres, pois os supermercados e lojas importam os objetos da China e da Coréia. Tudo a R$ 1,99. Até seu Antonio, se vivo fosse, iria preferir comprar pronto.
Feliz Natal para você e sua família.

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FLORIPES

Conceição da Praia: o glorioso dia de Floripes

Quem viu o que foi a festa em louvor a Nossa Senhora da Conceição da Praia – na sexta-feira passada - não pode medir o que era sua imponência até o último quarto do século passado. No século XVI era motivo para mostrar brasileiros e portugueses com suas mais ricas fatiotas; e as moças iam à busca dos futuros maridos. No século XX era o grande start para a lúdica diversão, que levaria um ciclo de três meses, das festas de largo. Quem este ano, achando que iria encontrar uma multidão alegre, muita capoeira, manifestações do folclore regional ou uma gastronomia de dar inveja a Baco, deus pagão, greco-romano, quedou-se ao olhar perdido e o ócio da maioria dos barraqueiros que apostaram na revitalização da festa de largo e empataram o investimento. Não foi ainda desta vez que voltou o brilho.
Antigamente, quando a noite da véspera do dia santo se iniciava, já não dava para ir facilmente até a praça. Chegar até o Elevador Lacerda, a partir do Mercado Modelo, menos de 500 metros de distância, era coisa para meia hora. E quem quisesse que tentasse chegar próximo do manto púrpura da imagem, dentro da matriz. Dificilmente conseguiria. Além da multidão que tomava as barracas com suas mesas de compensado e bancos de madeira pesada, desde as escadarias até o adro uma multidão compacta se postava, fechando os acessos. Vinha gente de todos os cantos e até os turistas de outros países começavam a descobrir a magia das festas de largo. Nesta época o Porto de Salvador recebia muitos navios de países diversos, notadamente os norte-americanos e os franceses.
Num dia da festa da Conceição da Praia, lá pelos idos dos anos 60, Floripes, o mais famoso viado da cidade, se emperiquitou todo. Sua fama vinha do jeito que andava, se vestia, agia e falava. Numa época em que os homens somente usavam roupas de cores sóbrias (branco, cinza, cáqui) ou em ocasiões especiais trajavam preto e azul marinho, com sapatos pretos, marrons ou marrom e branco, ele andava com roupas coloridas, carregava brincos e pulseiras. Tinha um gosto especial por sandálias femininas baixas, e rebolava como uma especialista em dança do ventre. Estava particularmente feliz, neste dia. No Porto tinha chegado um destróier francês e um porta-aviões dos Estados Unidos. A primeira coisa que os marinheiros faziam, ao desembarcar, era procurar as casas de tolerância do Pelourinho, Ladeira da Conceição da Praia, Montanha, Taboão, Pilar, Misericórdia e Gamboa. Floripes se postava nos locais chaves na esperança de conseguir namorar um dos marujos. Mas, foi na Barraca Água de Cheiro que seu sonho se realizou. Numa mesa estavam os grumetes americanos. Numa outra os franceses e, por coincidência, um marinheiro de cada nação se engraçou com ele. Bastou o americano apaixonado levantar que o outro seguiu. Um pegou Floripes pelo braço e o outro abraçou. Puxam, rasgam a roupa da bicha e saem no tapa. A briga ganha outra dimensão e instantes seguintes os marinheiros entram e guerra, acompanhados de rapazes que jogavam capoeira ou bebiam em outras barracas. Foram mais de vinte feridos com garrafadas, atingidos por mesas e bancos e também pela Fanta (cassetete longo de madeira) que policiais militares usaram sem parcimônia para conter a turba. Floripes conseguiu correr e se esconder num casarão junto de uma famosa casa de material de caça e pesca, onde tinha um brega.
No dia seguinte os digníssimos cônsules da França e dos Estados Unidos foram tirar seus marinheiros da velha cadeia do prédio da ladeira da Misericórdia. Clareou o dia e quando Floripes acordou no quarto do brega foi aplaudido de pé pelas velhas putas que fizeram um corredor polonês, costuraram suas roupas e ainda ofereceram um buquê de palma e margaridas. Foi a Glória. Pena que os jornais não noticiaram.
Nossa Senhora da Conceição da Praia deve ter fingido que nada viu daquilo. Coisa que desde 1549, quando o governador Tomé de Souza fez construir a igreja da Conceição da Praia - no local original hoje se encontra a majestosa catedral – nunca tinha acontecido. Os historiadores dizem que nesta época o governador ajudou, amassando o barro, a erigir uma capela de saibro. Ele mesmo se melando no barro. Mas, a igreja que hoje pontua a subida da Ladeira da Montanha começou a ser construída em 1736. As pedras vieram cortadas de Portugal, para serem montadas como um quebra cabeça em Salvador. Tudo veio talhado para gáudio da padroeira de Portugal e neo-padroeira da Bahia. Esta igreja que está em festa foi inaugurada em 1765 e somente concluída em 1849. Na realidade trata-se do terceiro prédio a ser erigido na área.
Saiba que Nossa Senhora da Conceição é uma designação equivalente para a Virgem Maria, que pode ser também Nossa Senhora, Nossa Senhora Aparecida, Virgem de Guadalupe, Santa Maria e outras. No sincretismo afro-brasileiro ela é representada por Oxum, deusa dos rios e cachoeiras, formosa e vaidosa. Companheira de Exu foi seqüestrada por Xangô, que se apaixonou por ela. Exu enviou uma poção mágica e Oxum se transformou numa pomba, voltando para casa. Oxum e Nossa Senhora da Conceição são reverenciadas no mesmo dia.
Uma fashion. Outra recatada. Uma deusa. A outra santa.

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SANTA BÁRBARA

Os festejos em homenagem a Santa Bárbara - que nem a Igreja Católica e muito menos os afro-religiosos gostam que digam que é sincrética a Iansã -, mudaram muito desde o final do século passado. Agora não tem mais um grande percentual de participação popular profana, e perdeu o ânimo de uma festa que, depois de São Nicodemus (este reverenciado pelos estivadores no dia 29 de novembro), seria aquela que deflagraria o Ciclo de Festas Populares da Bahia.
Hoje o povo não foge mais do trabalho, como antigamente, para sambar no pé ou acompanhar o samba na palma da mão. Quem pode vai. Quem não pode não se sacrifica.
Mas, embora sem a velha multidão que enchia o mercado localizado no Comércio, muitas pessoas ainda insistem em participar da missa, da procissão e da distribuição do tradicional caruru que é feita no prédio da central do Corpo de Bombeiros (este ano a missa foi para o quartel do pessoal da Bomba, lá do Bonocô, pois o prédio antigo, da praça dos Veteranos, onde fica a imagem da santa, ameaça desabar com ela e tudo).
Atualmente, a maioria que vai para os festejos é que tem a “cabeça feita”. Por exemplo, seo Romualdo Pai Incerto nada entende de sincretismo, de religião afro-brasileira e muito menos de religião Católica. O que ele gosta mesmo, por hábito, é cair na farra, tomando batida de tamarindo – como se fazia antigamente – e disputando o prato de caruru com a multidão. Todos os anos ele coloca seu terno branco de linho, que foi feito pelo alfaiate Teodoro Mão de Ouro (que Deus o tenha, pois morreu em outubro, bem no dia em que fazia 101 anos), que de tão engomado e tão passado a ferro para as festas já brilha até na luz da lua e ganhou vinco perpétuo. Saiu às três horas da manhã de Santo Antonio de Jesus e desembarcou na Rodoviária de Salvador, de onde foi pegar as primeiras missas e participar em algum terreiro da alvorada com fogos.
Depois foi só esperar a hora de ir para o Corpo de Bombeiros para tomar todas até dar a hora de voltar para sua cidade. Faz isso há mais de 30 anos. Por causa desta “devoção” e pelo fato que religiosamente, exatamente, nove meses depois sua mulher dona Francisca Oliveira Pereira Santos Correia (que este é o sobrenome do marido) dar luz a filhos do mais variado matiz (felizmente coisa que já não acontece a mais de 10 anos) é que ganhou o apelido de Romualdo Pai Incerto. O povo de língua ferina diz que todos os anos dona Francisca aproveita que o esposo está comendo caruru, para cair de boca no que não deveria. Seo Romualdo não liga e responde com um muxoxo.
O interessante é que nos últimos anos – pelo que se viu ontem – a festa volta, gradualmente, a despertar o interesse do povo. Além do lado religioso tivemos um tímido teor profano. O gênesis da festa foi 1641, numa iniciativa dos comerciantes e trabalhadores do Mercado de Santa Bárbara, no Comércio, onde tinham montado uma pequena capela. Depois da liturgia os fiéis seguiam a procissão pelas ruas, parando na Igreja da Conceição da Praia, voltando pelo mesmo caminho para o mercado e então tome-lhe samba-de-roda, rituais de candomblé e capoeira. Mas, o mercado pegou fogo em 1874.
Em 1912 a imagem foi para o Mercado da Baixa dos Sapateiros. A festa continuou, mas este novo endereço entrou em decadência a partir de 1980.
Para a homenagem não morrer, nos anos 90 a Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos passou a organizar a missa e o cortejo.
A procissão que todos os anos sai pelo Centro Histórico tem destino certo que é a parada no Corpo de Bombeiros onde se distribui o caruru. Porquê Santa Bárbara é madrinha dos bombeiros? - É fácil -, diz seo Romualdo Pai Incerto: “Ela, assim como Iansã – Eparrei, Oyá! – é deusa do fogo, da luz, do vento, das tempestades e dos raios, coisas que os bombeiros entendem”.
Ao contrário de Iansã ou Oyá, cultuada como dona do tempo e dos espíritos; que se apaixonou por Oxaguian e fugiu de casa, deixando o marido Ogum, Santa Bárbara foi sacrificada pelos próprios pais na cidade de Heliópolis, na época do imperador romano Maximiliano (305-311). Seus pais cultuavam antigos deuses romanos e fenícios, e não gostaram quando descobriram que ela tinha se convertido ao cristianismo. Seu fim foi triste: morreu decapitada. É uma das mais importantes mártires do Cristianismo.

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