sábado, 29 de novembro de 2008


Vassoura conceitual

 

Dimitri Ganzelevitch        

 

                                      

É impressionante constatar quanto Lisboa mudou nestes últimos 30 anos. Mais impressionante ainda é não ter perdido sua alma. Permanece igual a ela mesma, com seu charme discretamente provinciano, a harmonia e a diversidade de seus bairros, a excelência de sua gastronomia, especialmente a caseira, a conservação de seus magníficos monumentos em contraponto às ousadias da arquitetura contemporânea. Afinal um dos maiores arquitetos do século não é o português Álvaro Siza?

E, para quem não conhece, recomendo uma visita prolongada ao Centro Cultural de Belém. Alem de magnífico edifício, alia a mais atual arquitetura ao tradicional uso, como suporte, do mármore rosa tratado em bruto, sem polimento. O imponente edifício integra-se perfeitamente ao espaço, cujo ponto principal de atração continua sendo o soberbo Mosteiro dos Jerônimos. A cada viagem, tento visitá-lo e quando tem algum espetáculo, não deixo de assistir, nem que seja pela sóbria beleza do teatro.

 

Numa das minhas primeiras visitas ao CCB, entrei numa grande sala de exposições, situada no subsolo. A mostra era de conceituais franceses. Numa parede, uma série de fotografias da floresta amazônica montadas sobre placas de acrílico iluminadas por transparência. Perto, outra série, uns vinte quadrados vermelhos, todos rigorosamente idênticos. Para ser sincero, me lembro de pouca coisa mais, senão do profundo tédio que emanava do conjunto. Lembrei de outra exposição, desta vez em Barcelona, na Fundação Joan Miró. O cineasta/artista Peter Greenaway, autor de "O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante", tinha montado um trabalho conceitual sobre o tema de Ícaro. A exposição, de grandes proporções, era exaustiva festa para os olhos e a mente. Tudo tinha sido explorado. A cera, as plumas, o mar, o sol, a terra, o vento. Os visitantes passeavam encantados, fascinados, entre as montagens recriando as diferentes etapas do mito.

Lembrei também de uma bienal em São Paulo. Entrava-se no corredor obscuro com um espelho colocado debaixo do queixo e, ao chegar num espaço maior, com farta iluminação, panos e véus pendurados e voando pelo teto, perdia-se completamente a noção da limitação da sala, com a poética sensação de andar nas nuvens. 

Neste momento, aqui, estes artistas franceses me pareciam abusar de mesquinha masturbação intelectual, esquecendo que os visitantes também têm direito a usufruir um pouco do fazer-arte, sem se sentir analfabetos primários.

O cúmulo foi ao chegar perto de uns degraus defronte a uma porta hermeticamente fechada. O artista tinha colocado com o máximo cuidado, a igual distância dos degraus e da obra vizinha, um balde com água suja, uma vassoura nova e um pano de chão usado.

Contemplei o conjunto de objetos domésticos sem definir a proposta. Talvez uma postura de contestação, questionamento sobre o sentido da exposição, uma forma voluntariamente corriqueira de recuperar o arrogante espaço...

Estava perplexo, sentindo uma profunda irritação tomar conta de minha garganta, quanto ouvi "O senhor desculpe". Atrás de mim, uma mulher vestida de preto, cabelo cinzento, pedia passagem. Afastei-me. Com absoluta calma, ela pegou a vassoura, o balde, o pano e atravessou a sala para desaparecer na porta de entrada.

Acabava de limpar a sala.

 

 

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