segunda-feira, 11 de agosto de 2008


REPORTAGEM

A morada do Fecundo – Parte II






















Publicada em 08-08-08 às 07h35
Texto Hebert Regis – Fotos Eduardo Lena



Prisão do silêncio - Fecundo parece aprisionado numa forma voluntária de cumprir a própria sentença. Na falta de grades, seguranças e altas paredes que o separam do mundo exterior, Fecundo poderia colocar apenas os pés no chão e sair andando. Já teria a sua liberdade. Este é um bem que não se ganha ou compra, mas se conquista. Fecundo parece confortado, em uma penitência sem fim, com a sua própria condição. Mais do que o corpo preso ao carro de boi, ele está com a alma encravada.


À qualquer estímulo de tentar demovê-lo da sua proteção e do seu contínuo ritual de permanência no carro de boi, os seus braços se cruzam, e as mãos puxam o cobertor, como se aquilo pudesse colocá-lo numa bolha, em uma espaço, em que somente ele pode comandar. É a maneira que encontra para evitar que invadam seu mundo. Apenas a cabeça fica visível, e os olhos, os únicos a se comunicarem. Grandes e hipnotizantes, como se estivessem a querer mostrar o indecifrável.


Ao longe, enquanto todos conversam no fundo da casa, o olhar de Fecundo parece querer penetrar a alma de quem vê. Ele fica arredio ao mínimo sinal de toque, mas não recusa um olhar, como numa batalha para saber quem é mais seguro psicologicamente. Com um sorriso no rosto, mexe a cabeça lentamente, assenta os cabelos, como se tudo fosse registrado em câmera lenta. A barba confere um aspecto messiânico à sua aparência, desleixada, mas sem o aspecto de sujo. Não se assemelha a um mendigo.


O único que consegue se aproximar para manter bem cuidada a aparência de Fecundo é o filho de Joana, José Francisco Cavalcanti, mais conhecido na região como Zé de Neco. Ele troca quinzenalmente a roupa, assim como o cobertor. Uma tarefa que não é das mais fáceis. "Ele não quer deixar trocar nada. Mas depois ele se acostuma com as novas roupas e com o cobertor". Com um chapéu de sertanejo, sorriso fácil e muita simpatia, é o sobrinho quem conta a saga de Fecundo, quando ainda tinha uma vida promissora, antes de se "arruinar".


- Ele fazia tudo normal. Ele trabalhava na roça, e sempre trabalhou na roça, e vendia farinha e rapadura.


- Ia muito na cidade?


- Fecundo acompanhava o pai dele em todo o canto, e nas procissões que fazia ladainha e as orações. Não teve professor, ele aprendeu sozinho a via-sacra, e rezava ainda rapazinho para o pessoal aqui das roças. Era muito inteligente.


- E quando começou a "arruinar"?


- Depois de rapazinho. Começou aos poucos. Não lembro bem o dia. De uma hora para outra. Ele corria, e a gente tinha que ir atrás dele. Ele não trabalhava mais como antes. Passava o dia andando.


- E quando ele começou a viver no carro de boi?


- Não lembro muito bem...


Dona Joana, em sua sabedoria, tenta fugir da pergunta. Questionada de diversas maneiras, ela diz apenas que ele "arruinou". Depois descobriram que Fecundo estava com uma irmã na cidade, quando sentou-se depois do almoço para ler trechos da bíblia para a irmã, e de súbito ficou inconsciente. Depois do episódio, reza a lenda que Fecundo ficou agressivo, ameaçando quem se aproximasse. Em outras vezes saia correndo, sem destino, correndo, sem deixar rastro.

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