ESPECIAL
Durante viagem ao município de Santana, conhecemos o enigmático personagem Fecundo Jesus da Silva (78), que há quase meio século escolheu o carro de boi como moradia. Em nossa peregrinação por estradas poeirentas tivemos o importante apoio do historiador João Machado Villas Boas, que tempos atrás tomou conhecimento da história de Fecundo e publicou interessante artigo no site www.esantana.com.br do jornalista Rubens Silva e também Fábio Tonhá de Jesus, comerciante da cidade que gentilmente cedeu sua caminhonete D-20 para que pudéssemos ir até a localidade de Curral das Varas. Fábio e João Machado são confrades da Sociedade São Vicente de Paula, entidade religiosa que arrecada mantimentos que são distribuídos entre os moradores de comunidades carentes de Santana. Em função da reportagem ter fugido dos tradicionais texto publicados na internet, em termos de tamanho, dividimos em três partes que serão postadas durante os próximos três dias. Boa leitura.
Publicada em 07-08-08 às 08h45
Texto Hebert Regis Fotos Eduardo Lena (colaboração fotógrafo Erivan Alves)
A poeira que levanta no andar pelas estradas descortina uma realidade solitária. De uma vegetação castigada pela rigidez do agreste baiano, os sertanejos transformam a sua vida com a lida da terra. Em meio às plantações de mandiocas e de cana-de-açúcar, brotam não apenas o alimento, mas a comunhão entre a gente humilde e trabalhadora deste pedaço do Brasil.
As cercanias de arame farpado separam o escasso trânsito com a vida pacata dos moradores do povoado de Curral de Varas, localizado na zona rural de Santana, região Oeste da Bahia, distante
Ao longe, um fiapo azul parece se esconder atrás da plantação de mandioca. O cobertor azul é uma extensão da sua pele, uma proteção às intempéries do sertão. No meio de transporte típico da região, ele finca as suas raízes. No local onde a labuta da roça gera o produto final, ele sustenta o seu tronco. Fecundo Jesus da Silva escolheu há 48 anos o local de trabalho habitual do sertanejo como o seu lar. O carro de boi ocupa praticamente toda a extensão da casa de farinha, e se transforma praticamente numa extensão de seu corpo.
Ele transparece aos 78 anos uma fragilidade demonstrada não apenas pelas rugas ou pelos cabelos grisalhos, mas também pela magreza que salta à pele, quando arredio abaixa aos poucos o cobertor. Vê-se então de uma forma milimetricamente calculada a luta entre a força e a delicadeza. Naquele espaço de dois metros, ele se ajeita, agacha, vira, e volta a sentar-se. Não ousa a levantar, e confirma o carro de boi como uma morada segura. As rodas, já carcomidas pelo tempo, e pela imobilidade, ficam semi-enterradas no chão batido. Quem o vê, até imagina Fecundo saindo com o carro de boi pelas estradas de terra do vilarejo, enfrentando a poeira para chegar à cidade, e centenas de pessoas a ver o acontecimento, que mudaria os rumos da pacata Santana, que possui cerca de 25 mil habitantes, metade localizada na zona rural.
É Joana Pereira Cavalcante, 76, cunhada de Fecundo, que praticamente, aborta o pensamento.
- Deixa ele quietinho aí.
- Já tentaram tirar ele do carro e levar para dentro da casa?
- Não, meu filho, aí ele não dá trabalho, fica quieto. Melhor do que antes.
Um homem sem registro - De andar apressado, com a experiência de vida marcada nas rugas e nos cabelos brancos, Joana se refere à época
"Fecundo, você quer isto? Ele fica calado. A gente repete. Fecundo você quer? Ele responde. Sim ou não, bem rápido". Estas são as únicas palavras pronunciadas por ele, depois de muito esforço. Saem como se fossem pequenas fagulhas de fala, depois que Joana acende o fogo. "Só quando vem um sobrinho, que começa a conversar, ele fala mais coisas", avisa Joana, desestimulando assim uma maior comunicação com Fecundo.
Com o falecimento do esposo, Manoel Pereira Cavalcante, há dois anos, Joana passou a cuidar efetivamente de Fecundo. Com a morte do companheiro, Joana se transformou na matriarca de mão forte e voz ativa na casa da família Jesus da Silva. A senhora de fala rápida também toma conta dos irmãos, Genésio, 80, Ana, 88, que são surdo-mudos e nunca aprenderam a falar. É por meio de gestos e sinais, muitas vezes, despercebidos, que eles se comunicam. Sobre as necessidades básicas, Joana diz que não falta comida. Fecundo come da mesma comida que oferece aos outros moradores da casa. É da renda dos três, das aposentadorias, que eles se sustentam.
No início, quando era jovem, Fecundo trabalhava dobrado para suprir a deficiência dos irmãos. Existe uma iniciativa para tentar aposentá-lo. Porém, ele não tem nenhum documento, sequer o registro de nascimento. "E como cadastrar Fecundo no benefício? Do carro de boi ele não desce, muito menos para ir até a cidade. Precisa trazer alguém aqui para fazer os documentos? E será que alguém vem até aqui? Ele pode ser beneficiado?" Estes foram alguns dos questionamentos nos quais Fecundo prestava atenção de longe, quando virava apenas o pescoço. "Ele entende tudo", diz Joana, quando os envolvidos na conversa voltaram-se para ele.
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